SÉRIE NEM TANTO AO MAR | 2016
A minha Praia
Rigor, construção, geometrismo são termos que ressaltam numa primeira leitura dos trabalhos de André Bauduin, além da mestria no uso das cores e texturas, transmutadas por sua câmera fotográfica tal qual a paleta do pintor. Não por acaso, algumas referências imediatas do universo da pintura geométrico-construtiva - os Boggie Woogie de Mondrian, o colorismo de Aloísio Carvão e a fragmentação espacial de Raimundo Collares - servem para contextualizar sua obra.
A cidade e os seus elementos urbanos – sinais de trânsito, calçadas e seus revestimentos, faixas de pedestres, tapumes de obras - são sua matéria de expressão e os agentes deflagradores do seu processo criativo. Seduzido pela dinâmica da urbe, André tem, no entanto, na construção da sua imagem e no acabamento da sua foto, uma preocupação formal de inscrever, demarcar, territorializar aqueles elementos iniciais colhidos ao acaso, como forma de ordenamento desse caos urbano. A alusão à paisagem é evidente (série – “Nem Tanto ao Mar” e a obra “Azulvermelholaranja” ) - sim, a linha do horizonte está lá, sugerida pelo alinhamento do meio-fio, mas apenas para demarcar e dividir horizontalmente a superfície do plano; assim como o calçamento e seus desenhos, a areia da praia transforma-se em mera textura, e uma lixeira ao fundo ou um inconfundível céu azul, na parte superior da imagem, são os únicos elementos a sugerir alguma profundidade. Assim, desprovidos de qualquer pespectiva, seus recortes de paisagem, ao contrário da janela renascentista, nos apresentam uma superfície totalmente bidimensional, a demonstrar uma urgência na apreensão e captura do espaço urbano como forma de representação do mundo. Essa concisão e economia espaciais advêm de sua vasta experiência, no campo da publicidade e do design, e funcionam para o artista como os operadores para a formulação de uma (sua) “identidade visual”; esse termo, tomado de empréstimo ao repertório criativo da sua vivência profissional anterior, perpassa a obra de André e serve como uma chave de compreensão do seu modus operandi, ao articular o fazer artístico e aquele próprio da publicidade.
Além da questão espacial, tão ou mais importante talvez, seja o tempo a categoria que dê conta de uma leitura mais completa da obra do artista. Passear, deambular , flanar... esse é o convite que nos faz através de suas fotos. A flânerie (que é o ato de flanar) foi o termo cunhado por Charles Baudelaire em seu livro Sobre a Modernidade, para descrever a atividade do ser errante e misterioso que percorre a cidade moderna sem pressa, sem correria, procedendo a um exercício de análise da vida cotidiana em busca de novas percepções da cidade - "uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la", diz o poeta. Como nos fala João do Rio, nosso flâneur carioca, “flanar é ter a distinção de perambular com inteligência”. Essa prática também encontra eco no conceito de deriva do escritor francês Guy Debord. No seu percurso em praias ensolaradas e seus calçadões, através de re-montagens de cores e texturas, o artista nos dá a ver um outro tempo - mais lento e desacelerado do que o ritmo frenético do dia a dia da cidade grande.
Na série “Sinais Limite” e “Chão que eu piso”, os signos urbanos - setas, sinais de trânsito reproduzidas em colagens de fragmentos repetidos e ritmados- são muito mais fotogramas de um road-movie pessoal e muito particular do que apenas elementos estéticos a compor o espaço da foto. Passeando, ora a pé ora em sua de bicicleta, André, flâneur tropical, no melhor estilo daqueles escritores, embora distanciado em seu olhar, ele sente a cidade, e, ao criar com suas foto-montagens uma outra espacialidade, nos incita, através de relações imaginárias, a recriarmos a urbe que habita em nós.
Embora suas fotos me evoquem a Bossa-Nova como um suposto fundo-musical, o Rio de Janeiro, que Bauduin nos apresenta, nada tem de nostálgico ou saudosista. Carioca por excelência, ele nos convida a olhá-lo por um outro filtro - destituído da multidão, dos carros e de toda e qualquer poluição visual o artista apresenta uma nova percepção ao tecer outras narrativas para a cidade; sua cor é pulsante e sensual, revelando-lhe o hedonismo inato e, assim, longe dos clichês veiculados pela mídia que a reduzem a um cartão-postal barato e vulgar, o artista carioca propõe um novo tipo de fruição para ela.
Ainda que distanciado, nada escapa ao olhar do nosso caminhante - sem alarde, André deixa transparecer em sua obra uma certa crítica social. Na série “Homens de Areia”, em que fotografa ambulantes caminhando na praia no alto verão, o artista subverte a sua função (de ambulantes) e, retirando-os do anonimato, os transforma de vendedores em também flâneurs na (sua) paisagem e protagonistas da cena - engenhosa manobra, vale observar que os mesmos não têm como vender seus produtos porque a praia está simples e paradoxalmente deserta … e irônica, vem a pergunta : - Vender para quem? Aliás, há que se notar que o elemento humano é quase ausente nas fotos de Bauduin - se existe, em geral está sozinho, mas não solitário, e sempre está caminhando. Esse homem não busca desvendar nenhuma verdade metafísica na natureza ou refletir sobre alguma indagação filosófica ou existencial, e sua caminhada se conecta muito mais com a idéia de um stop-motion, um câmera-lenta, um ralentar da velocidade da metrópole para afirmar a transitoriedade do tempo e da vida.
André, em seu texto de apresentação da série “Sinais Limite”, relaciona a sua obra com o pensamento de Foucault quanto à sujeição e domesticação dos indivíduos em sua teoria sobre o poder. A metáfora é pertinente, mas creio que um olhar mais atento pode dar conta de uma outra leitura da obra do artista. Suas paisagens, colagens e foto-montagens, mais que um exercício meramente formal, são jogos a formular novas cartografias na dinâmica urbana. Sua percepção o aproxima bem mais da criança descrita por Baudelaire no seu livro - “a criança vê tudo como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor” - ou da errância voluntária conceituada por Debord, do que o corpo domesticado e submisso de que nos fala Foucault. Menos mercantil e mais afetivo, menos consumista e mais corpóreo, André nos estimula a uma nova experiência em seus passeios - a um comportamento previsível e disciplinado próprio da cidade moderna, o artista contrapõe o lúdico como poética e vivência possíveis, e é nessa vertente que a obra do artista ganha toda a sua força.
Lígia Teixeira, artista visual | 2016.